Intervenção endovascular arterial percutânea abaixo do joelho orientada pelo conceito do angiossoma
AUTORES
Rubens Pierry Ferreira Lopes e Clarissa Dall`Orto
Hospital Regional de Teixeira de Freitas – BA
RELATO DE CASO
EBO, masculino, 69 anos, hipertenso, diabético, tabagista (40 anos-maço), apresenta-se com dor intensa e necrose progressiva no hálux direito há cerca de dois meses após trauma local. Tratamentos com antibióticos e curativos não resultaram em melhora. Lesão vem aumentando progressivamente. Admitido em pronto socorro e feito o diagnóstico clínico de Doença Arterial Obliterante Periférica (DAOP), sendo a necrose de natureza mista, a saber, isquemia (principal) e infecção secundária.
Ao exame clínico, os pulsos pedais não foram palpáveis. Instituiu-se antibioticoterapia sistêmica empírica com ciprofloxacino e clindamicina, analgesia com opióides e o tratamento clínico otimizado.
Os exames laboratoriais incluíram o hemograma completo, ureia, creatinina, glicemia de jejum e eletrólitos e se encontravam dentro das faixas da normalidade.
Realizada aortografia abdominal, arteriografia pélvica e do membro inferior direito, evidenciando-se sinais angiográficos de ateromatose moderada no território femoropoplíteo (figuras 01, 02 e 03) e severa no território infrapoplíteo, a saber:
a) artéria tibial anterior estava ocluída desde o nível da perna proximal (figuras 04, 05 e 06);
b) artéria fibular com estenoses severas e sequenciais em longo segmento no nível do terço proximal da perna (figuras 04);
c) artéria tibial posterior com uma oclusão segmentar de longa extensão no nível do terço proximal da perna, pérvia por reenchimento no terço médio da perna através de circulação colateral e com um extenso segmento com estenoses severas no nível do tornozelo (figuras 04, 05 e 06).
d) O arco plantar era incompleto (figura 06).
Devido ao diagnóstico de DAOP com isquemia crítica e risco de perda do membro, indicou-se a revascularização do membro por método endovascular como tentativa de salvamento do membro. Três dias após a realização do exame diagnóstico e da introdução do clopidogrel 75 mg/dia, bem como da otimização do tratamento clínico, realizou-se o procedimento terapêutico.
INTERVENÇÃO E TÉCNICA:
Com o paciente em decúbito dorsal horizontal em posição invertida na mesa de exame (os pés na posição da cabeceira), realizou-se a punção anterógrada da artéria femoral comum direita e, pela técnica de Seldinger, posicionou-se um introdutor valvulado 5F x 11 cm. Heparinização sistêmica com heparina não-fracionada 100 UI/Kg (dose única) por via venosa. Após um breve estudo arteriográfico (figura 07), ultrapassou-se o longo segmento estenótico da artéria fibular com um fio-guia 0,014 x 300 cm (Progress-40 – Abbott) e realizou-se angioplastia com balão semicomplacente 3,0 x 120 mm (Passeo-18 – Biotronik) (figura 08), obtendo-se bom resultado angiográfico (figuras 09, 10 e 11).
Guiando-se pelo conceito da revascularização orientada pelo angiossoma, optou-se por complementar o tratamento com a tentativa de recanalizar a artéria tibial posterior. Utilizando o mesmo balão de angioplastia, previamente utilizado, como microcatéter, conseguiu-se cateterizar a origem da artéria tibial posterior e, com técnica de recanalização subintimal, todos os segmentos arteriais ocluídos foram ultrapassados e houve o retorno para a luz verdadeira da artéria na sua porção distal. Uma nova angioplastia com o balão 3,0 x 120 mm (Passeo-18 – Biotronik) (figura 12) obteve um bom resultado, permitindo-se continuar o procedimento e, com um balão 2,5 x 12 mm (Sprinter – Medtronic), realizar novas angioplastias sequenciais da mesma artéria ao nível do tornozelo (figura 13).
O resultado angiográfico final foi satisfatório e houve melhora significativa no padrão de perfusão do arco plantar (figuras 14, 15 e 16). O procedimento foi concluído com a retirada do introdutor vascular, compressão manual da região da punção e curativo compressivo. Não houve complicações relacionadas ao acesso vascular. O pulso tibial posterior estava palpável no membro tratado.
O paciente foi submetido a debridamento da lesão do hálux sob anestesia local no terceiro dia após a angioplastia e recebeu alta hospitalar com tratamento clínico otimizado e dupla antiagregação plaquetária, sendo a programação manter o clopidogrel por um período de três a seis meses. Houve a completa cicatrização da lesão debridada após um mês do procedimento, cumprindo o objetivo clínico do salvamento do membro e a artéria tibial posterior mantinha-se pérvia clinicamente (pulso palpável e cheio).
DISCUSSÃO
O conceito clássico da revascularização infrapatelar era de que se apenas uma das três artérias estivesse patente, a perfusão do membro estaria preservada, embora na prática clínica isso nem sempre se confirmasse. Nas revascularizações cirúrgicas com enxertos de derivação, escolhia-se o vasoalvo considerando, sobretudo, a anatomia vascular, ou seja, a artéria que fosse tecnicamente de mais fácil abordagem e apresentasse a maior probabilidade de proporcionar um bom escoamento sanguíneo distal, muitas vezes sem levar em conta a topografia da lesão. Nem sempre uma revascularização bem sucedida era seguida do salvamento do membro.
No final da década de 1980, o conceito do angiossoma foi desenvolvido inicialmente pelos cirurgiões plásticos na área das reconstruções com retalhos microcirúrgicos. Em se tratando especificamente do membro inferior, este conceito fornece importantes informações sobre a distribuição anatômica e a contribuição de cada artéria na irrigação de cada região do pé e do tornozelo, ajudando a determinar o melhor vasoalvo e a melhor estratégia de revascularização do membro. Isso é particularmente útil no paciente diabético com feridas neuroisquêmicas e doença aterosclerótica severa e difusa, onde o acometimento dos vasos distais do pé e no tornozelo limitam as possibilidades de revascularização e aumentam o risco da perda do membro.
Existem pelo menos cinco angiossomas bem documentados no pé e tornozelo. Eles derivam da irrigação direta proveniente de uma das artérias infrapatelares, mas não são isolados e possuem conexões entre si. A implementação de estratégias de revascularização guiadas pelo angiossoma contribui para o sucesso clínico e sobrevida livre de amputação na medida em que o vasoalvo é determinado pela topografia da lesão no pé ou tornozelo, o que permite a revascularização direta da lesão e aumenta a probabilidade de cicatrização por melhora da perfusão. Deste modo, por este conceito, a escolha do vasoalvo deve ser sempre guiada pela topografia da lesão, a fim de permitir a revascularização direta. Se isso não for possível, uma outra artéria que não tenha relação direta com a área da lesão, mas que possua anatomia mais adequada do ponto de vista técnico para revascularizar, também pode ser escolhida, pois provê uma revascularização indireta da lesão e aumenta a probalidade de salvamento do membro.
E, ainda, como as feridas costumam ser extensas e envolver mais de um angiossoma, recomenda-se revascularizar um, dois ou os três vasos, sempre que possível. No caso em discussão, a lesão trófica isquêmica era no hálux, cujo angiossoma deriva da artéria plantar medial, ramo da artéria tibial posterior. Portanto, a artéria tibial posterior foi o vasoalvo escolhido. Entretanto, como esta artéria encontrava-se com um longo segmento de oclusão e lesões distais severas, portanto, de difícil abordagem técnica, optou-se por abordar inicialmente a artéria fibular, já que anatomia vascular era mais favorável e permitiria, no mínimo, a revascularização indireta da lesão (revascularização de pelo menos uma artéria). Após o sucesso no tratamento da artéria fibular, tratou-se com sucesso a artéria tibial posterior, obtendo-se a revascularização direta da lesão e foi concluído o procedimento com duas artérias tratadas e com posterior cicatrização da lesão e salvamento do membro.















